quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O quarto do Mistério.

Passei boa parte de minha infância no sobradão do meu avô. Era um sobradão colonial, daqueles que se vêem nas fotos de Ouro Preto e São João dei Rei. A gente entrava por uma porta enorme. Nunca pude entender as razões para portas tão altas, tão largas, tão grossas, como se gigantes fossem os que moravam naquelas casas... A porta se abria para um longo e sombrio corredor, ao fim do qual havia uma escada de três lances. Terminada a escada os caminhos se bifurcavam. À frente, outro longo corredor, que conduzia para dentro do sobrado. Ao lado, a sala de visitas, lugar nobre da casa onde se entrava por uma porta envidraçada, de vidros coloridos azuis, vermelhos, amarelos e verdes, importados. Dentro era o teto esculpido, os frisos dourados, os candelabros, os consolos de mármore com vasos de cristal, estatuetas e bibelôs, os espelhos enormes, o piano Pleyel, os sofás e as cadeiras de palhinha, símbolos de nobreza e riqueza que eram exibidos aos visitantes. Portas com sacadas de ferro fundido se abriam para a praça com seu jardim de palmeiras, tipuanas e ipês. Dali se via passar não somente a banda, como também enterros e lúgubres procissões da Semana Santa. A sala de visitas era imperativa. O arranjo dos móveis não dava lugar a dúvidas. Os visitantes eram obrigados a se assentar nos lugares certos e a ver as coisas determinadas. Não havia ali lugar para imprevistos. Tudo estava em ordem. Cada coisa no seu lugar. O corredor levava para dentro da casa onde só eram admitidas pessoas íntimas. Uma ampla sala de jantar, com oito janelas envidraçadas se abrindo para o poente e uma outra janela solitária, que se abria para o sul. As janelas eram protegidas pela sombra de uma velha trepadeira que, à noite, se transformava em passarela de gambás. E havia os quartos enormes, em fila. Era preciso atravessar o primeiro para ir ao segundo, e pelo primeiro e o segundo se se desejava ir ao terceiro. As noites eram assombradas, regidas pelo carrilhão que batia, indiferente e sem pressa, os quartos de hora - informação inútil que só servia para tornar a insônia ainda mais torturante. Era um fascínio andar por aqueles quartos, salas, corredores, escadas. Mas o que me fascinava era um quarto proibido, trancado o tempo todo, onde ninguém entrava. Em outros tempos, quando a casa estivera cheia de filhos e de empregadas, todos os quartos eram quartos normais, simplesmente. Mas aconteceu o que sempre acontece: os filhos se casaram, os tempos de vacas magras chegaram, foram-se as empregadas, morreram os pais, só ficaram três filhas solteironas. Sem uso, aquele quarto foi transformado em depósito de coisas velhas, onde não entrava nem vassoura nem espanador, porque não era preciso. Era proibido entrar nele e a chave enorme ficava escondida. Eu compreendo a proibição. Para as tias o quartão era o lugar das coisas feias, da poeira que se acumulava, das teias de aranha. Menino não devia brincar num lugar como aquele. Mas para mim era o quartão do mistério. Se não houvesse mistério, a chave não ficaria escondida nem haveria a proibição de entrar. O quarto proibido é sempre aquele em que a gente quer entrar. A mulher do Barba Azul não se contentou com os 99 quartos e as 99 chaves: foi logo para o centésimo quarto com a centésima chave, o único quarto onde ela não tinha permissão para entrar. Assim somos nós, seres fascinados pelo mistério e pelo proibido. A razão para esse gosto eu não entendo, mas sei que é com ele que a alma humana é feita. Pois eu roubava a chave e, silenciosamente, entrava no quartão do mistério e me trancava lá dentro. Pelo silêncio as tias imaginavam que eu deveria estar longe, no jardim ou na rua. Mal sabiam... O quartão do mistério era um lugar encantado. Até mesmo aquilo que as tias consideravam horror ajudava a compor a cena: a poeira acumulada sobre os móveis, as teias de aranha, o cheiro de mofo - tudo dizia que ali o tempo havia parado. O que era confirmado por um enorme relógio redondo, dependurado na parede: ao contrário do carrilhão da varanda, que em Minas é aquela sala de jantar imensa, que tocava a cada quarto de hora, o relojão redondo estava parado desde sempre. Tudo era mágico. Os objetos emergiam de um mundo de sonhos. As duas cítaras, com incrustações de madrepérola: por quanto tempo teriam estado naquele limbo de silêncio? E as paletas de pintura? Estavam cobertas com tinta dura. Qual teria sido o último toque do pincel, antes da morte? A interrupção devia ter sido repentina, pois as bisnagas de tinta endurecida ainda estavam pela metade. Já não serviam para nada, mas ainda se podia sentir o seu perfume. Um gramofone, discos velhos, revistas maravilhosas, canastras que haviam cruzado o oceano, bolsas, óculos Trotzki, instrumentos de medicina que não mais se usavam, álbuns de retratos amarelados de homens de colarinho engomado e mulheres de anquinhas. Acho que meu fascínio pelo quarto do mistério se deveu ao fato de que, por dentro, eu sou como ele. Minha alma é um quarto onde os objetos mais estranhos estão colocados, um ao lado do outro, sem ordem, sem nenhuma intenção de fazer sentido. Por oposição à sala, onde cada objeto está colocado numa ordem precisa em relação aos outros, no quartão do mistério não há ordem, não há arranjo: cada objeto é um universo completo, não depende dos outros. E está explicada a razão para a minha profissão de psicanalista: é que cada pessoa, com sua sala de visitas limpa e ordenada, aberta à visitação geral, tem um fascinante quarto de mistério onde só se penetra roubando a chave. Minha profissão é roubar chaves... E até mandei gravar em madeira as palavras de um verso de Drummond: "Trouxeste a chave?" Alguns analistas há que pensam como as minhas tias: acham que o quarto proibido está cheio de coisas terríveis, restos de naufrágios, corpos esquartejados detritos, excrementos, fedores. E é isso que encontram, pois a gente só encontra o que está buscando. Mas, para mim, menino naquele lugar proibido, as coisas terríveis são apenas molduras para coisas encantadas, imobilizadas em sono, fora do tempo, como a Bela Adormecida, em meio ao pó, às teias de aranha, às heras e plantas selvagens, à espera de alguém que dará o beijo que quebrará o feitiço... Assim é esse quarto da minha casa. Nele cabe tudo: psicanálise, poesia, idéias em gestação. E poderei mesmo incluir coisas que outras pessoas me enviarem. Como o "Quarto do mistério" do sobrado do meu avô, não são todos que gostarão de ficar nele. Só os amigos... (Rubem Alves)

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